segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 5

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Capítulo 5: Perigo oculto

No primeiro dia, todos apontavam para seus países. No terceiro ou quarto dia estávamos apontando para os nossos continentes. Ao quinto dia, víamos apenas uma Terra.
- Sultan bin Salman Al-Saud, astronauta

Depois que Shion havia acabado de ler o livro de imagens, Karan deu um suspiro de satisfação.

"Foi uma boa história."

Rico abriu suas narinas mal-humorado. Ele brincou com os curativos recém mudados em seu pescoço e reclamou.

"Bem, eu não acho que foi bom. Histórias sobre coelhos são chatas."

"Então, que tipo de história que você quer ouvir, Rico?" Shion perguntou.

"Ummmm..." Rico parou por um momento de reflexão. "Ah, uma história sobre o pão. E... e uma sobre sopa e batatas doce fritas."

"Você deve estar com fome, Rico."

Karan virou-se para Shion e assentiu.

"Ele está com fome o tempo todo. Rico fica mais com fome do que qualquer outra pessoa."

"Só um minuto, então. Eu acho que tenho um pouco de sopa..." Havia sopa sobrando para ele? Uma tigela de sopa que poderia saciar o estômago vazio de Rico por um curto tempo...

Karan se levantou.

"Não, obrigado. Está tudo bem. Temos de ir para casa agora." Ela levou o seu irmão mais novo pela mão e foi até a porta. Ela parou, virou-se e falou em voz baixa. "Obrigado por ler para gente."

"Vocês são muito bem-vindos."

"Podemos vir amanhã de novo?"

"É claro."

"Ok". Um sorriso se espalhou pelo rosto Karan, e ela meio que arrastou Rico para fora. Nezumi se esticou na sombra de uma pilha de livros.

"Estúpido como sempre, não é?"

"Estúpido? Eu?"

"Dizem que os maiores idiotas são aqueles que não percebem que são idiotas. Acho que tinha um provérbio assim." Nezumi se levantou, e colocou o pano de super fibra em seu pescoço. "Você tentou ajudar as crianças. Você tentou dar-lhes resto de sopa."

"Isso é uma coisa estúpida de se fazer?"

"Essas crianças vieram aqui para que você lesse para elas, não vieram para mendigar. Se você pudesse garantir que Rico nunca fosse morrer de fome de novo, seria bom e legal. Mas se você lhe der sobras de sopa um dia por capricho, o que vai fazer da próxima vez que ele morrer de fome? Você não seria capaz de cuidar dele o tempo todo. Se você estiver indo ser irresponsável e for abandoná-lo no meio do caminho, seria melhor que não desse nada a ele em primeiro lugar. Karan tem uma ideia melhor de como as coisas funcionam. Essa menina é brilhante e digna. Ela soube recusar a sua caridade meio-sentimental e imprudente."

Shion se afundou em uma cadeira. As palavras de Nezumi sempre lhe infligia dor. Parecia que sua pele estava sendo arrancada de seu corpo. Ele quase podia ouvir o som de sua carne sendo rasgada por ele. Sua idiotice, sua arrogância, sua negligência. Sua vaidade fora despojada dele, ele fora deixado nu: superficial e pretensioso ― seu verdadeiro eu. Nezumi caminhou à sua frente e continuou a falar enquanto colocava um par de luvas.

"Há um segundo exemplo de sua estupidez. Quer ouvir?"

"Claro. Diga-me."

"Você fez uma promessa para amanhã."

"Há algo de errado nisso?"

"Não há nenhuma garantia de que vai haver um amanhã."

Shion respirou fundo.

"Então você está dizendo que eu não posso ter certeza de que eu vou estar vivo amanhã para ler um livro para essas crianças?"

"É. Veja, você está começando a pegar as coisas mais rapidamente. Você está na lista de procurados da Secretaria, e saiu vagando ontem. Eu não ficaria surpreso se os satélites de rastreamento já te pegaram. Talvez os caras que não têm nada melhor para fazer na divisória da aplicação da Lei da Secretaria de Segurança estejam vindo para cá agora. Se estiverem, então você pode esquecer de ter um amanhã de leitura. Na melhor das hipóteses você estaria em uma cela solitária na Unidade Correcional, na pior das hipóteses, você não iria nem mesmo ser capaz de falar, porque estaria morto".

Shion estava olhando para as mãos cobertas palas luvas de couro de Nezumi. Mesmo quando ele estava falando cruelmente, seus movimentos ainda eram graciosos. Shion queria imitá-lo se pudesse.

"O que?" Disse Nezumi. "Você está no espaço de novo."

"Ah... oh, me desculpe."

"Você realmente não tem noção do perigo, não é? Acho que até um gamo recém-nascido seria mais cauteloso do que você."

"Nezumi".

"Eu não quero ouvir isso", disse ele abruptamente. "Eu estou indo trabalhar."

"Será que as autoridades da cidade realmente têm a intenção de me prender?"

Nezumi parou.

"Este lugar é ao lado da Nº 6", Shion continuou. "Se eles realmente se propuseram para me pegar, não seria difícil para eles, de qualquer modo... não, não só a mim. Você também é um VC foragido, não é? E, ao contrário de mim, você saiu andando lá fora o tempo todo. Os satélites de rastreamento na Nº 6 são capazes de manter a vigilância detalhada em um local em sua órbita estacionária".

"Uh-huh, então?"

"Então, eu estou querendo saber o porquê. As autoridades não estão sérias em tentar nos pegar. Eles certamente não ficaram desesperados com isso, para dizer o mínimo."

Nezumi encolheu os ombros.

"Shion, de ambas as formas, boas e más, a cidade em que você nasceu não está interessada nas coisas fora dela. Para eles, tudo é completo dentro daquelas paredes. O Bloco Ocidental é a sua lata de lixo. Aqui, eles jogam fora os seus resíduos, suas pus. Se você é pus a eles, provavelmente acham que o Bloco Ocidental é um lugar apropriado para você. Eles apertaram o pus para fora de seu ferimento minúsculo e jogaram no lixo. Eles não vão voltar procurando por isso."

"Então, eu estaria seguro enquanto estivesse aqui."

"Quem sabe? Provavelmente as coisas não irão muito bem, mas há uma chance de você ficar seguro... Você disse que queria continuar a viver aqui, não disse? Talvez o seu sonho vá se realizar."

"Até a primavera, pelo menos."

Ele tinha uma moradia até a primavera. Uma vez que a primavera chegasse, e as vespas entrassem em seu período de atividade, o que aconteceria no interior da Cidade Santa? Será que as vespas parasitas varreriam a cidade com seu medo? Ele tinha que fazer algo antes que ficasse mais quente, antes que a primavera chegasse. Ele tinha que bolar um plano antes que terminasse o inverno.

"As vespas comedoras de gente finalmente se mostraram", disse Nezumi alegremente. "Você deve apenas sentar e assistir. Vai ser um palco interessante para ver o que acontece na Nº 6. Nossa vespa será a estrela do palco. Uma tragédia como nenhuma outra, ou uma comédia como nenhuma outra. Eu me pergunto o que vai ser?"

"Minha mãe ainda está dentro daquela cidade. Eu não posso parar e ficar olhando."

"O que, você está pensando em ir para casa?"

"Uma vez, antes da primavera chegar. Vou ver se consigo fazer um soro sanguíneo então."

"Usando o seu próprio sangue?"

"É. Seria impossível fazer um perfeito, claro, mas vale a pena tentar."

"Ei, você pode ser um gênio, mas o que você pode fazer sem frascos e seringas? Você com certeza não poderá obtê-los aqui."

"Eu vou tentar pedir a Rikiga-san. Talvez ele possa conseguir pelo menos o mínimo de equipamento de que vou precisar."

"O homem não vai fazer nada a menos que ele coloque dinheiro no bolso", Nezumi disse categoricamente. "Você pode ser o filho de uma garota que ele amava, mas tentar convencê-lo a fazer o trabalho de graça, e ele vai dar a volta tão rápido quanto qualquer coisa."

"Você acha?" Shion disse com dúvida. "Mas nós ainda vamos precisar de um soro. Sim, eu vou dizer a ele que se tudo der certo, ele poderá ganhar um pouco dinheiro com isso. Vou convencê-lo de algum mo..."

Os pés de Nezumi se moveram. Shion, com cadeira e tudo, saiu voando pelo chão. Uma pilha de livros caiu. Os ratos saíram correndo.

"O que foi isso?" Ele tentou se levantar. Antes que Shion pudesse se mover, o joelho de Nezumi estava em seu peito, e sua mão estava segurando seu ombro para baixo.

"Shion". Olhando para o rosto de Shion enquanto ele estava deitado de costas, Nezumi moveu os dedos do ombro Shion para sua garganta. Através do couro de suas luvas, Shion podia sentir a sensação de cinco dedos em seu pescoço. Eles começaram a apertar lentamente.

"Você não vai resistir?"

"Não. Não ia adiantar nada. E você concorda", Shion disse calmamente.

"Desiste muito facilmente, hein? Não se preocupa com a sua vida?"

"É claro que sim."

"Ou você está pensando que eu nunca te mataria?"

"Sim".

Nezumi sorriu. Seus olhos cinzentos, seus lábios finos e seu nariz bem definido formaram um sorriso bonito, mas cruel e impiedoso.

"Não pense muito bem de si mesmo", ele disse suavemente. Uma faca apareceu na mão de Nezumi, como se por magia. "Lembro-me de fazer algo assim há quatro anos também. Eu estava te segurando bem assim em sua cama."

"Eu também me lembro", disse Shion. "Naquela época, fui eu quem se lançou em direção a você. Você se esquivou como se fosse nada, e no momento seguinte, você estava me prendendo e eu não conseguia nem me mover."

Naquela noite tempestuosa. Lembrou-se do vento uivando fora de sua janela. Lembrou-se da sensação de corpo magro de Nezumi, febril e quente. Fazia quatro anos desde então.

Já faz quatro anos, e eu ainda não tenho nem a habilidade e nem o coração para empurrar este corpo de lado.

"Naquela época, eu estava segurando uma colher. E eu disse ― você se lembra? ― Que, se isso fosse uma faca, você estaria morto."

"Sim".

"Quer tentar?" Seus dedos se afastaram da garganta de Shion. Em seu lugar, a lâmina de uma faca foi empurrada sob seu queixo. Estava frio. Shion sentiu uma pontada de dor.

"Eu não vou deixar você fazer um soro sanguíneo", Nezumi sussurrou. "Eu não te salvei para que você pudesse sair por aí fazendo algo assim. Mantenha seu nariz fora das coisas que não são da sua conta. Fique escondido aqui até chegar a hora."

"Até chegar a hora? Quando é que vai ser?"

"Quando eu atacar Nº 6 com o seu golpe fatal, é nesse momento."

"Quando você atacar Nº 6..."

"É. Vou sufocá-la até o último suspiro."

O peso se levantou do peito de Shion. Nezumi guardou sua faca, e limpou o sorriso cruel de seu rosto. Ele tirou uma luva, e acariciou Shion sob o queixo com o dedo nu. Uma pequena mancha vermelha saiu na ponta de seu dedo.

"Este é o seu sangue. Nem pense em fazer algo tolo como um soro. Conserve isso para que se possa fazer um melhor uso."

"Nezumi". Shion agarrou seu pulso. "Por que você detesta tanto a Nº 6?"

Não houve resposta.

"O que aconteceu entre você e Nº 6? Por que você tem tanto ódio por ela?"

Nezumi exalou brevemente. Os músculos de seu pulso flexionaram.

"Shion, você ainda não entendeu que tipo de lugar é a Nº 6? Ela suga os nutrientes dos lugares ao seu redor, e enquanto eles crescem magros, ela só fica mais inchada. É uma horrível..."

"Cidade Parasita".

"É. Então você sabe o que eu estou falando. A humanidade está tendo mais e mais a intenção de expulsar organismos parasitas. O que eu estou fazendo é a mesma coisa. Vou exterminar e limpar a Nº 6 da face da terra. Uma vez que o lugar se for, as pessoas aqui não terão mais de viver em uma lata de lixo."

"Mas o que eu quero ouvir é a sua razão pessoal", Shion persistiu.

"Eu não tenho uma."

"Você está mentindo. Foi você quem me disse apenas para lutar por mim mesmo."

Nezumi ficou em silêncio e encolheu os ombros.

"Seria vingança?"

Silêncio. Nezumi nem mesmo se incomodou de tirar o pulso de Shion, e olhou para ele no momento em que eles ficaram cara-a-cara.

"Você quer se vingar de Nº 6? Se você quer... então o que aconteceu?"

"Eu não preciso te dizer."

"Eu quero ouvir isso." Shion cerrou os dedos ao redor do pulso de Nezumi. "Eu quero saber, Nezumi".

De repente, Nezumi começou a rir. Parecia uma risada que era genuinamente cheia de alegria.

"Nossa, você é como um pirralho fazendo uma birra. Certo, Shion."

"Mm-hmm?"

"Se eu te contar, você vai cooperar comigo?"

"Hein?"

"Quer me ajudar quando eu esfaquear o coração da cidade em que você nasceu e cresceu? Você me ajudaria a trazer destruição ― não a salvação ― para a cidade? Eu não preciso de qualquer soro sanguíneo. Se as vespas parasitas existem, então vou usá-las. quero causar estragos dentro da Nº 6. Quero ver as pessoas que sempre viveram em segurança caírem em pânico, fugirem em confusão, e se levarem a destruição. Esse é o tipo de coisa que eu tenho em mente. Você vai me ajudar, Shion?"

Shion balançou a cabeça de um lado para o outro. Ele baixou o olhar do par de olhos cinzentos.

"Eu não posso fazer isso."

Os dedos de Shion foram sacudidos.

"Você é sempre assim," Nezumi cuspiu. "Você sempre diz que quer saber, mas nunca está preparado para lidar com isso. Saber significa estar preparado para saber. Depois de descobrir a verdade, não há como voltar atrás. Você não pode voltar a ser da maneira que era, feliz e despreocupado. Porque você não pode entender isso? Shion, deixe-me fazer outra pergunta."

Nezumi agachou-se, e enganchou um dedo sob o queixo de Shion.

"Eu ou a Nº 6 - qual você escolhe?"

A respiração de Shion ficou presa na garganta. Ele sabia que seria confrontado com esta decisão um dia. Ele sentiu que ia acontecer.

O que ele deveria escolher? Se ele escolhesse um, perderia o outro. Ele não queria voltar para Nº 6. Nesse sentido, ele não tinha qualquer laço deixado por aquela cidade. Mas com as pessoas, era diferente. Sua mãe, e Safu, que estava em outra cidade agora, e os moradores da Cidade Perdida estavam todos dentro daquelas paredes. Dentro daquelas paredes tinha um cenário familiar e boas lembranças.

Se Nezumi nutria ódio da Nº 6 inteira, de seu povo, da paisagem, das memórias e de tudo mais, então ele não poderia simpatizar com aquele ódio.

Os dedos de Nezumi se retiraram de seu queixo.

"Você ama a Nº 6, e eu a odeio. É por isso que, um dia, vamos ser inimigos."

Foi um murmúrio. Um murmúrio que esfaqueou seu coração.

"Eu tenho a sensação de que vamos", Nezumi disse calmamente.

Ele havia dito algo semelhante antes. Naquela vez, também, Shion tinha dito que ele queria saber. Ele queria saber como Nezumi cresceu. Eu quero saber sobre você, tinha dito. E agora ele estava recebendo a mesma resposta que recebeu naquele momento. Nós vamos ser inimigos. Mas naquela época, ainda havia riso nos olhos de Nezumi, e sua voz era leve com tom de brincadeira. Mas agora, estava pesada. Uma escuridão pairava sobre a declaração, esta realidade pesada afundou ainda mais em Shion. Era a resposta honesta de Nezumi.

Algum dia, nós vamos ser inimigos.

Nezumi se levantou, e olhou para o relógio na parede.

"Merda, estou atrasado", disse ele a si mesmo. "O gerente provavelmente está irritado." Ele virou as costas para Shion. Sua voz e seus olhos se limparam de qualquer sombra de intenção homicida. Seus olhos cinzentos brilhavam, e seu tom de voz era casual.

"Nezumi".

"Sim, sim", disse Nezumi despreocupadamente. "Mamãe vai trabalhar agora. Cordeirinho, você estará no comando da casa enquanto eu estiver fora. Um lobo assustador vai passar por aqui, mas faça o que fizer, você não tem permissão para abrir a porta. Ok? "

"Não me subestime", Shion disse calmamente.

A expressão de Nezumi endureceu. Ele virou um pouco o rosto para trás, e franziu testa.

"O que você acabou de dizer?"

"Eu disse, não me subestime tanto."

"Você está ofendido porque eu te chamei de cordeirinho? Então é porque eu não posso lhe dar o papel da Chapeuzinho Vermelho? A bonita e inocente Chapeuzinho Vermelho. Alheia às dúvidas e ao cuidado, ela acaba sendo comida pelo lobo. Um papel perfeito para você. "

Eu não vou ser provocado. Você pode me condescender tudo o que você gosta. Mas tenho algo que preciso te dizer.

"Às vezes há coisas que eu posso ver e que você não pode."

"Eu não entendo o que você está dizendo", Nezumi disse sem rodeios. "Oh, espere, supõe-se ser a sua frase habitual, certo?"

"Você coloca tudo em dicotomias", Shion continuou, ignorando o comentário de Nezumi. "Você ama ou você odeia. Você é amigo ou inimigo. Fora da parede, ou dentro da parede. E você sempre diz que só se pode escolher um deles."

"É claro. Se eu estivesse na bifurcação da estrada perdendo tempo tentando decidir o que fazer, eu murcharia. Isso é o que covardes e traidores fazem. Você não pode fugir para sempre. Algum dia você vai ter de escolher um ou outro."

"Você não acha que poderia haver uma terceira via?"

"Terceira via?"

"Sim".

"Shion, o que você está dizendo é incompreensível", Nezumi disse irritado. "Que 'terceira via'?"

"Ao invés de destruir Nº 6, e se você a fizesse desaparecer? Você já pensou sobre isso?"

Nezumi colocou a mão em sua bochecha, e respirou fundo. Ele estava tentando não mostrar seu rosto, mas Shion podia dizer que ele estava agitado. Shion deu um passo adiante.

"Derrube as paredes. Livre-se delas."

"Você quer dizer as barreiras de Nº 6?"

"Sim. Sem suas paredes, Nº 6 em si não irá mais existir. Todo mundo poderá ir e vir livremente. Tire os muros e portões. Então não haverá nada dividindo Nº 6 e os Blocos um do outro, e..."

Nezumi se estourou em risadas. Ele se inclinou, segurando o estômago. Seu riso oco ecoou na sala do porão. Os ratos se amontoaram com medo e se enrolaram em bolas, tornando-os menores ainda.

"Isso tem tanta graça assim para você?" Shion disse tenso.

"É hilário. Isso é tão engraçado, que está me fazendo lacrimejar. Você não é apenas um pouco cabeça de vento, não é? Você também tem tendências ilusórias? Qual terceiro caminho, hein? São apenas palavras bonitas, um conto de fadas irreal."

"Nezumi, eu estava falando sério quando eu disse..."

"Não quero ouvir nada disso." Não havia resquícios de sorriso deixados em seu rosto quando Nezumi disse essas palavras. "Ainda não podemos fazer esse lugar desaparecer tão facilmente. Temos que deixá-lo continuar do jeito que está, deixe-o se vestir e encher a barriga com boa comida, deixe-o crescer gordo. Posso apenas imaginar o quão grande que deve sentir para cortar a barriga aberta com um golpe. Vou tirar todas as suas entranhas empanturradas e expô-la à luz. Eu não posso esperar. Sim, a primavera vai ser grande. Estou bastante animado."

Shion ergueu o queixo, e apertou as mãos em punhos em seus lados.

"Eu não me importo se você rir de mim, eu ainda acho que pode ser feito", disse ele em um tom desafiador. "Eu quero acreditar que é possível."

"Você está apenas procurando por uma rota de fuga", Nezumi atirou de volta. "Você está procurando uma maneira para evitar se machucar. Diga o que vai acontecer se você se livrar dos muros: você não vai obter algum tipo de céu. Vai ser um inferno. Tumulto, desordem, brigas, saques... você não sabe o quanto essas pessoas têm sido oprimidas até agora. Você não sabe quantas pessoas foram sacrificadas para que essa cidade estivesse onde ela está. Você não sabe, e é por isso que você pode inventar contos de fadas como esse. Shion, não pode ser feito. Não é como uma mistura de tintas, você não pode misturá-los e fazer-lhes um. Um vai ter que destruir o outro, essa é a única solução. Isso foi o que o destino definiu. Amor e ódio, amigos e inimigos, aqueles dentro e aqueles fora da parede... e você e eu. Eles nunca poderão ser como um, e nós também não."

"Você não sabe até tentar. De uma coisa..."

"De uma coisa?"

"...Eu sei, que não me tornarei seu inimigo. Nunca. Aconteça o que acontecer, mesmo se eu fosse morto, eu estaria do seu lado."

"Apenas palavras bonitas."

"É a minha decisão."

Era a sua vontade, e era inabalável. Para saber, você tinha de experimentar primeiro. Ele acreditava que as almas humanas, quando confrontadas com um dilema, acabariam por escolher a paz antes da guerra, canções e escrituras antes das armas e o amor antes do ódio. Não era uma fantasia. Era esperança. Ainda não abandonei a esperança. Eu quero encontrar uma estrada que você não pode ver, e apontá-la para você.

Nezumi desviou o olhar. Ele chutou a perna da cadeira, com a ponta do sapato.

"Fico fora do sério às vezes quando eu estou com você. Sua cabeça está cheia de teorias ingênuas e idealistas, e você fala como se fosse realmente sério."

"Você não me ouviria se eu não estivesse falando sério."

"Já basta", disse Nezumi secamente. "Cale-se". Ele começou a colocar de volta no lugar a cadeira que tinha chutado antes, e bateu levemente na almofada desbotada da poltrona. "Um teórico idealista de poltrona como você deveria ficar somente aqui o dia inteiro. Ignorar o mundo lá fora, e meditar sobre isto e aquilo tudo dentro da sua cabeça. Não fale mais comigo. Não me faça ficar mais irritado do que isso."

"Nezumi" Começou Shion.

"Eu não quero ouvir isso. Ouvir você me deixa doente. Doente e cansado. Droga, se eu soubesse que você era tão tagarela, eu nunca teria te trazido aqui em primeiro lugar."

"Eu não sou um tagarela. Eu na verdade nem gosto de falar muito com as pessoas".

"Então, mais uma razão para você calar a boca."

Mas eu não posso somente calar a boca. Eu não posso sentar aqui, me fechar em meu próprio mundo e me isolar do mundo exterior. Eu tenho que falar com você, ouvir a sua história, e buscar uma maneira para que possamos continuar vivendo juntos.

Eu não quero mais viver assim ― tapando meus ouvidos, mantendo minha boca fechada, fechando meus olhos. Nezumi, foi você quem fez me sentir assim. Coloque suas mãos longe de seus ouvidos, você disse, abra a sua boca, e deixe os seus olhos verem. Essas foram as suas palavras. E agora você está me dizendo para calar a boca? Você está me dizendo que não quer ouvir?

"Quem é o covarde agora?" Ele resmungou em voz alta sem pensar. A expressão de Nezumi endureceu.

"O que você disse?"

Isto irá acabar em uma luta? O pensamento passou rapidamente em um canto da sua mente. Então ele decidiu que não se importaria. Se lutassem, Nezumi o levaria facilmente para o chão. De quatro anos atrás até agora, isso não havia mudado. Shion não tinha nenhuma chance contra ele. Mas não se tratava de ganhar ou perder.

Ele queria cobrar de Nezumi com seu próprio corpo, com sua própria carne. Ele não se importaria se ele fosse empurrado para o chão, perfurado, ou preso para que ele não conseguisse respirar. Mesmo por um momento, ele queria colidir com Nezumi como iguais.

Mas Nezumi desviou seu olhar novamente. Ele foi para a porta, sem sequer olhar para Shion. Mas antes que a mão de Nezumi se fechasse em torno da maçaneta, apareceu um som abafado de arranhões do lado de fora. Algo estava arranhando a porta. Um momento depois, houve um latido. Nezumi e Shion se entreolharam.

"Soa como um cão."

Nezumi abriu a porta. Um grande cão marrom escuro estava sentado na soleira da porta, abanando o rabo. Ele tinha um embrulho branco em sua boca.

"Você é de Inukashi... aconteceu alguma coisa?" Nezumi pegou o pacote da boca do cão. Era uma carta. Nezumi a leu e os cantos de sua boca se relaxaram.

"Shion, há uma solicitação de emprego para você."

Shion correu os olhos pela carta que foi passada para ele. Estava quase ilegível. O papel em si era amarelado, velho e molhado com saliva de cachorro, e a caligrafia serpenteava em todo o lugar. Mas emocionou o coração de Shion mais do que qualquer outra carta que havia recebido.

ei Shion, com vontade de trabalhar? é um emprego de lavagem de cães. eu preciso de ajuda. se você quiser fazer isso, siga esse garoto. enquanto ele estiver com você, os Faxineiros não vão fazer nada engraçado. nos vemos mais tarde

Oh PS:esse garoto disse que você foi feito para lavar cães

"O que é lavagem de cães?"

"É como se lê. Você lava cães... os que Inukashi empresta para o aquecimento. São os grandes e tranquilos com pêlo longo. Deve haver cerca de vinte deles ao todo. Inukashi tem clientes que às vezes não pagam porque eles se queixam de que os cães são malcheirosos ou têm pulgas, por isso uma vez por semana em um dia ensolarado, tem que levá-los para uma lavagem. Então o que você vai fazer?"

"Eu vou, é claro", Shion brilhava. "Ele está me perguntando se eu quero ir trabalhar. É o meu primeiro emprego. Eu tenho um emprego agora."

"Você quer parar de transbordar?" Nezumi disse com uma careta. "Cara, você é realmente fácil de agradar, não é?"

"Nezumi, devo levar alguma coisa comigo? Você acha que eu vou precisar de sabão?"

"Você provavelmente não vai precisar de nada. Só cuidado com homens e mulheres que podem te puxar para os becos, eu acho. Se esse cachorro estiver contigo, creio que você não precisa se preocupar. Eu vou com você até metade do caminho."

"Falando nisso, eu quero ver o lugar onde você trabalha um dia. E ver você no palco."

"Não tenha muitas esperanças."

O cão latiu.

"Obrigado", Shion disse à ele. "Graças a você, eu fui capaz de conseguir o meu primeiro emprego. Eu sou todo seu, me leve até lá."

O cão abanou a cauda quando Shion se agachou para ele, e lambeu-lhe a garganta.

"Você está lambendo minha ferida para mim? Você é um bom garoto."

"Imbecil, ele só te lambeu porque sentiu cheiro de sangue".

"Eu não penso assim. Ele fez isso porque estava preocupado comigo. Mas qualquer que seja o motivo, ele é certamente melhor que você", Shion disse ironicamente.

"Não me compare com um vira-lata", disse Nezumi duramente. Ele parecia genuinamente descontente. A maneira como ele franziu os lábios trouxe de volta uma imagem fugaz de seu rosto há quatro anos. De alguma forma isso fez Shion ter vontade de rir, e por alguma razão, o fez se sentir nostálgico.

"O que?" disse Nezumi. "Do que você está rindo"

"Nada", Shion disse suavemente. "Só percebi que ainda tem uma parte infantil restando em você. Isso me fez meio que feliz."

"Hein?"

"Não importa. Certo, então", ele disse rapidamente, "mostre o caminho." Ele acariciou o cão de leve na parte de trás. Pegando a deixa, o cão subiu as escadas. Shion o seguiu e saiu do porão.

O sol brilhava em seus olhos. Vejamos... Um dia como este seria perfeito para lavar cachorros. Ele inclinou o rosto para o céu e respirou profundamente.

Parecia que a figura de Shion estava sendo sugado para a luz. Quando Nezumi se arrastava para fora do buraco escuro a luz sempre esfaqueava seus olhos. Ele não gostava de locais iluminados. Lugares cheios de luz sempre se transformavam facilmente em áreas de perigo. Ele sabia disso muito bem por experiência. Ele não podia ser como Shion e aceitar plenamente a luz sem hesitação.

Amigos e inimigos. Fora da parede e dentro da parede. Amor e ódio. Luz e escuridão.

Eu te disse, não disse? Eles nunca poderão se coexistir. Eu já lhe disse tantas vezes, e você ainda parece não entender.

Ele engoliu um suspiro que estava a meio caminho de sua garganta. O nó se afundou profundamente em seu peito novamente.

Quando Nezumi estava prestes a fechar a porta, um rato apareceu em seu pé.

"Você está de volta." Ele o pegou na mão. O rato parecia exausto. Seus olhos cor de uva estavam embaçados.

"Você trabalhou duro. Descanse." O rato balançou a cabeça e cuspiu uma cápsula na palma de Nezumi. Havia um pedaço de papel azul claro dentro.

"Uma resposta, hein." Se fosse, Shion iria se alegrar. Hoje deve ser um dia de sorte para cartas.

Por um instante, uma escuridão cruzou seu coração. Uma coisa negra. Não tinha forma era só escuridão. Incerteza, um mau pressentimento. Uma dor incômoda pulsava na parte de trás de sua cabeça.

Sua habilidade de sentir o cheiro de perigo iminente ou da calamidade era algo que ele tinha desde o nascimento. Graças a esta habilidade, ele foi capaz de escapar várias vezes, em alguns casos por um triz. O conteúdo desta cápsula carregava um mau cheiro. Cheirava como o primeiro passo em direção a algo que iria levá-lo à destruição...

Abriu a cápsula. O papel estava escrito com o que parecia ser a escrita de Karan.

Safu foi pega pela Secretaria de Segurança. Ajuda. -K

A dor piorou. Nezumi apertou os olhos fechados, e se apoiou pesadamente contra a porta.

Safu era aquela garota. Porque ela ­― ela não era uma elite? Assim como Shion... assim como Shion... o que significa ― ela foi levada no lugar dele? O segundo bode expiatório? Mas ele não sabia por que razão. Porque eles precisam de um sacrifício? Shion foi enquadrado como um assassino para encobrir o que a vespa parasita fez. Eles só deveriam precisar de um agressor. Então, por que ­― por que as autoridades querem outro sacrifício? Por que...

De qualquer maneira, se essa menina é o segundo sacrifício, ela não foi levada para a Secretaria de Segurança. Ela está indo para a Unidade Correcional. Um rato leva metade de um dia para voltar da Nº 6. Não há mais tempo. Ela provavelmente já foi presa na Unidade Correcional.

Por que eles estavam eliminando tão facilmente uma estudante da Classe Privilegiada que haviam avaliado, selecionado cuidadosamente, e que gastaram fundos consideráveis ​​e tempo para sustentar?

Por quê? Por que ― o que estava acontecendo? O que eles estão escondendo? O que está para acontecer?

Nezumi se levantou lentamente.

Ele não sabia. Era um mistério. Mas agora não era o momento de resolver enigmas. Ele tinha uma decisão importante a tomar.

O que fazer com isso?

Se ele mostrasse esta nota para Shion, ele provavelmente iria direto para a Unidade Correcional, mesmo sem saber que tipo de lugar que era. Ele iria, com a única intenção de resgatar Safu. Um tolo menino como ele nunca seria capaz de deixar a morte de um amigo ser ignorada. Se ele pudesse impedir, seria motivo suficiente para ele mergulhar de cabeça em um ninho de cobras venenosas. Ele estaria disposto a embarcar para a sua própria morte.

Ou eu ignoro isso?

Era muito fácil de fazer. Esta menina, Safu, não tinha nada a ver com Nezumi. Ela era uma estranha. Não era da sua conta o que deveria acontecer com ela. Ele poderia deixar as coisas acontecerem, e não teria importância. Nada mudaria.

Mas se Shion morresse, algo dentro dele iria mudar muito. Ele não queria ver Shion morrer. Ele provavelmente iria sofrer. Não Shion, mas ele Nezumi ia sofrer, de ter que viver e estar diante do cadáver de Shion. Ele estaria experimentando o mesmo sofrimento de novo, de ser assado vivo no inferno.

Você deve estar brincando comigo. Eu já tive o suficiente disso.

Ele não queria perdê-lo. Ele não queria experimentar o remorso de ter sido o único que viveu.

Eu não quero perdê-lo? Eu iria sofrer?

Ele estava estalando a língua de frustração.

Então foi neste ponto em que ele havia chegado. Ele quase se sentiu como se estivesse se enrolando no chão.

Ele havia resgatado Shion da Secretaria de Segurança para pagar a dívida que ele lhe devia. E era só isso. Ele nunca quis ter uma ligação com ele. Shion não era o único, ele apenas nunca quis se unir ou compartilhar seu coração com qualquer outra pessoa. Sentimentos por outros eram ainda mais perigosos que a luz. Ele não era de compartilhar uma conexão com alguém. Quer seja com um homem ou uma mulher, ele deveria apenas desenvolver relações que poderiam ser cortadas facilmente.

Nunca abra o seu coração para ninguém. Não acredite em ninguém, mas em si mesmo.

As últimas palavras da velha. Ele estava indo contra elas novamente.

Eu não quero perdê-lo. Eu iria sofrer.

Nezumi cuidadosamente dobrou novamente a nota de Karan e a enfiou dentro da cápsula.

Ele estava acostumado à perda, ele estava acostumado ao sofrimento. Não era? Mesmo se Shion morresse, talvez ele não gemesse em agonia sobre sua perda escancarada. Mesmo se fizesse, talvez fosse apenas por um curto tempo.

Ele poderia usar sua cama e seu chuveiro livremente. Não teria que se preocupar em fazer sopa suficiente. Não seria bombardeado incessantemente com perguntas. Não teria que abaixar um livro para escutar outras palavras, e dar uma resposta ao tentar conter sua irritação.

Ele iria voltar à sua vida normal. E seria isso. Ele deveria apenas passar a cápsula com a nota e tudo para Shion, e depois virar as costas para ele.

Por um capricho, Nezumi abriu a porta novamente.

À frente dele estava seu quarto, cheio de livros e móveis escassos. O porão, rodeado por paredes grossas, era um ninho adequado para um rato como ele.

O quarto parecia estéril e escuro, e maior que o habitual. Seu espaço escuro, frio e vazio penetrou em seus ossos.

Isso era o que estar ligado com alguém significava. Ele não seria mais capaz de viver sozinho. Era uma das muitas armadilhas artisticamente definidas que espreitavam em cada esquina de sua vida. E para esta, ele havia sido vítima.

Será que eu ainda tenho uma chance?

"Nezumi, o que há de errado?" Shion chamou a partir do topo da escada, que levava à entrada ao nível do solo. "O cão está me apressando. Apresse-se e suba logo." Sua figura sombria flutuou contra o brilho do meio-dia.

Será que eu ainda tenho uma chance? Shion, ainda serei capaz de viver sem você? Depois de uma certa quantidade de sofrimento, eu seria capaz de me separar da armadilha que você se tornou?

Eu seria capaz de me separar de você?

"Nezumi?" A voz de cima caiu apreensiva.

"Nada... estou indo." Ele fechou a porta e ouviu o cachorro latir. Havia luz. O farfalhar de uma brisa.

Nezumi enrolou o pano de super fibra ao redor de seu pescoço novamente, e subiu as escadas, passo a passo. Ele seguiu ascendente ao chão.

Leia o volume 3 - capítulo 1

4 comentários:

Anally-Chan disse...

Oiiii! Olha eu aqui de novo, sempre fã de seu trabalho!
AMEIIII COMO SEMPRE E FELIZ POR TER AA UMA REGULARIDADE NAS POSTAGENS ^^
Bjs e continue com o ótimo trabalho :D

Anônimo disse...

nezumi, nezumi, seu bobinho, você fala essas coisas mas todo mundo sabe que tu ama o shion e_e

Unknown disse...

Nova leitora, estou muito feliz por estar lendo a novel.
<3

Raiane disse...

Obrigada ^^

Postar um comentário