domingo, 25 de agosto de 2013

[Novel] No. 6 Volume 3 Capítulo 4

No.6 3 

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Capítulo 4: Uma Mentira da Verdade, Uma Verdade da Ficção

As orelhas do rei são orelhas de burro.
Orelhas de burro grandes e peludas.
Movendo, contraindo, as orelhas de burro.
– Mito grego "Orelhas de Burro do 'Rei Midas'" [1]

Nezumi caminhou lentamente ao longo do caminho noturno. Aqui, a noite e as trevas eram sinônimos. Depois que toda luz natural desaparecia, o que restava era um mundo de trevas. Tudo ficava pintado de preto.

Às vezes, um barraco deixava uma fina tira de luz escoar para fora de uma de suas rachaduras, enquanto que apenas mantinha o vento e a chuva no lado de fora. Mas as luzes eram muitas vezes extintas pouco tempo depois, e um frio gélido reinava sobre a noite, perfurando a escuridão, o silêncio, e as roupas das pessoas para atingir os seus corpos quentes embaixo.

Mesmo a fumacinha branca de respiração que escapava de seus lábios desaparecia na escuridão. Ele virou o rosto para o céu. Inúmeras estrelas piscavam no claro céu noturno.

Amanhã de manhã, provavelmente será ainda mais frio do que o habitual. E do lado de fora, mais pessoas irão congelar até a morte. Um destino cruel para encontrar sob um céu estrelado. Mesmo com um céu cheio de estrelas, ninguém chamava essas noites de inverno de lindas ― não neste lugar.

Nezumi parou seus pés, e olhou para a cidade brilhando à distância. A cidade da luz aparecia na escuridão ― a Cidade Santa de N° 6.

Toda a cidade brilhava ouro, e lembrava o mito do rei Midas que transformava tudo o que tocava em ouro.

Na escuridão gelada, Nezumi sorriu fracamente.

Rei Midas adquiriria o toque de ouro, mas em troca ele não seria mais capaz de trazer carne nem pão para seus lábios, e iria até mesmo transformar sua amada filha em uma estátua de ouro. Ele, então, finalmente perceberia sua ganância e sua loucura, e pediria perdão aos deuses.

N° 6, o que você vai fazer? Você, a cidade que olha para baixo à nós em nossa escuridão, e reluz com toda a sua ilusão e o seu artifício, você também vai rastejar no chão e pedir perdão algum dia? Mas não haverá deuses para lhe conceder misericórdia. Vestida com esse seu manto de ouro, você vai se desintegrar, queimar em cinzas, e perecer. Eu vou viver até o momento em que as cortinas caírem ao seu final. Eu vou continuar a viver, e ver seu fim com os meus próprios olhos.

Nezumi recolocou seu pano de super fibra em torno de si e começou a andar. Um ratinho, que Shion havia nomeado Hamlet, empurrou a cabeça para fora das dobras e chiou suavemente.

Sim, ele ia viver. Assim como ele havia vivido por todo esse tempo até agora, ele continuaria vivendo, mesmo que tivesse de rastejar a terra em seus quatro cantos. Ele iria blindar a si de qualquer perigo, afiar suas presas, polir suas garras, e continuar vivendo até o momento em que ele afundaria seus dentes na garganta do outro e acabaria com isso.

Ele iria sobreviver, continuar vivendo. Ele iria.

Nezumi colocou a mão no bolso de trás das calças. Dentro dele estava o memorando de Karan.

Safu foi pega pela Secretaria de Segurança. Ajuda. –K

Ele ainda não tinha mostrado a Shion. O que ele tinha a ver com isso? Nezumi estava suspenso em sua decisão. Ele estava em uma encruzilhada, incapaz de jogar o memorando fora, nem passá-lo para Shion e virar as costas para ele, dizendo que não era da sua conta.

Ser indeciso, vacilar e estar perturbado ― ele sabia o quão perigoso isso era para ele, estava quase que dolorosamente consciente disso. Direita ou esquerda, cima ou baixo, lutar ou fugir, abandonar ou proteger ― o segundo decisivo tomado para tomar uma decisão era a diferença entre a vida e a morte. Ele nunca havia feito a escolha errada. Era assim que ele havia sobrevivido até agora.

Este memorando é perigoso. Então, tudo o que ele tinha de fazer era jogá-lo fora. Junto com a indecisão que, sem dúvida, poria em perigo a sua vida, o melhor seria enterrar tudo na escuridão.

Ele sabia a resposta correta. Mas por que ele não estava seguindo-a? Por que ele estava pegando a encrenca, até pagando uma grande quantia de dinheiro para coletar informações sobre a Instituição Correcional? O que diabos eu estou fazendo?

Seus pés pararam.

Nezumi parou e treinou seus olhos à escuridão. Ele estava em um declive pouco povoado com árvores, algumas dezenas de metros de distância de sua morada subterrânea.

"Quem está aí?" ele falou calmamente. Houve um ruído seco em cima dele, talvez por uma rajada de vento que assobiava através dos ramos nus. Mas ainda mais discretamente, houve um movimento no escuro, o som fraco de um passo sobre as folhas.

"Um pouco lento pra perceber, não?" Houve um pequeno ladro de risada. "Esse não é você, não é você mesmo. Com o que você estava sonhando?"

"Inukashi."

O cabelo preto do Inukashi e pele bronzeada eram convenientes para misturar com a escuridão. Mas foi descuido dele não ter notado sua presença a ponto dele chegar tão perto. Ele não era ele mesmo hoje.

"Ainda bem que era só eu. Quem sabe quantas vidas você precisaria se estivesse atordoado assim perseguido por qualquer outra pessoa, Eve". Inukashi chamou Nezumi pelo seu nome artístico, e deu outra risada curta.

"As coisas não são muito mais seguras com você por perto", Nezumi replicou. "Especialmente se você está me esperando à noite para me emboscar na estrada." Ele deu metade de um passo para trás. "O que você quer, Inukashi? Acho que é pouco provável que você tenha sido capaz de obter a informação tão rápido."

O tom de voz do Inukashi mudou e todo o sarcasmo desapareceu de seu discurso.

"Nós temos uma emergência."

"Emergência?"

"Agora a pouco... bem, há algum tempo atrás... Shion veio me ver."

"Ele foi?" Um choque de desconforto correu através dele, quase que dolorosamente.

"E não se trata de seu trabalho de lavagem de cães, também. Ele enfiou um casaco cinza na minha cara, e me perguntou se eu tinha pegado da Instituição Correcional".

"Casaco cinza, hãh... de mulher?"

"É. Ele estava rasgado no ombro, mas era uma bela peça de roupa. Ele veio de um negociante de roupas usadas para quem vendi coisas. Coisas que eu contrabandeei da Instituição Correcional".

Deve pertencer a essa menina ― Safu. Nezumi virou de lado e respirou fundo.

"Então?"

"Então?" Inukashi repetiu incrédulo. "Você me diz. Qual é o roteiro para este ato, hein, Nezumi? Shion diz que este casaco pertence a sua amiga. O que significa que sua amiguinha está sendo mantida como prisioneira na Instituição Correcional. E hoje cedo, você me deu dinheiro para coletar informações sobre a Instituição Correcional. Não me diga que não estão relacionados... Nem um cão iria cair nessa mentira. Você está planejando ajudar a amiguinha de Shion, é isso o que você está fazendo?"

Nezumi não tinha como responder. Ele não podia afirmar nem rejeitar o que Inukashi tinha dito.

"Claro que não", Inukashi respondeu por ele. "Não há maneira alguma de alguém como você jogar sua vida fora para ajudar um estranho."

"O que faz você pensar que eu vou morrer no processo?"

Na outra extremidade da escuridão, Inukashi chupou uma respiração profunda.

"Você está meio dormindo? É a Instituição Correcional de que estamos falando. Por alguma sorte feliz, você pode conseguir se esgueirar lá dentro. Mas não há maneira alguma de sair vivo. Nezumi, não tenha ideias engraçadas".

"Ó Deus, você está preocupado comigo? Estou chocado."

"Eu podia me importar menos por você", Inukashi estalou. "Se um rato morre ou não, não faz diferença. Mas o que você vai fazer com o Shion, hein? Agora ele sabe pra onde foi levada a sua amiguinha. Sendo o menino esquecido que ele é, ele provavelmente pensa que a Instituição Correcional é apenas um confortável Centro de Disciplina, ou o que for. Ele provavelmente descobrirá que tudo o que tem a fazer é entregar um Formulário de Visitação pra ver sua amiguinha. Se você não deter ele, o garoto vai embora. Ele vai ir e... ele vai se matar."

Inukashi ficou em silêncio, a escuridão da noite parecia se aprofundar. Até o vento estava calmo ― os galhos das árvores deixaram de fazer até mesmo um leve sussurro.

"É isso que fez você esperar todo esse tempo para me dizer?" Nezumi disse brevemente. "Dói imaginar o sofrimento que eu devo ter te feito passar."

Nezumi se adiantou e pegou Inukashi pelo ombro antes que pudesse escapar. Enquanto tivesse participando da presença do outro, ele poderia mais facilmente prever todos os seus movimentos.

"Não importa o que Shion pretende fazer", Nezumi disse calmamente. "Ele não é um de nós, e não é da nossa conta."

"Então, por que diabos você tá farejando suas costas?" Inukashi respondeu acusador. "Por que você precisa reunir informações sobre a Instituição Correcional em segredo?"

Nezumi endureceu seus dedos e os cavou mais adentro no ombro magro e ossudo de Inukashi. Inukashi gritou de dor. Nezumi se dobrou para levar seus lábios perto da orelha do outro.

"Não meta o nariz em coisas que não são da sua conta", ele sussurrou. "Você faz o trabalho que você foi pago para fazer, e nada mais."

Ele deixou sua mão ir. O pequeno corpo de Inukashi oscilou vacilante.

"Eu só disse a Shion de onde veio o casaco", ele disse. "Eu não disse nada sobre o porquê de você ter vindo me procurar."

"Claro que você não fez isso."

"Nezumi, Shion vai sozinho", Inukashi disse calmamente. Ele debilmente balançou o braço que agora estava entorpecido inteiramente até as pontas dos dedos. "Ele acha que você não sabe nada sobre isso. E ele vai sozinho, sem dizer nada a ninguém. Ele não vai te envolver. Você sabe disso, né?"

"O que te faz ter tanta certeza? Você é o papi de Shion ou algo assim?"

"Eu não tenho que ser seu papi pra saber. Você deve saber ainda melhor do que eu que tipo de pessoa ele é. Isso é porque você tá vigiando ele em segredo, não é?"

"Cale a boca!" Nezumi havia levantado sua voz em um grunhido. Suas emoções chicotearam meio turbulentas, sua respiração ficou irregular. Inukashi quase não mostrou reação.

"Se ele é tão precioso pra você não querer perder ele", Inukashi disse firmemente, "proteja ele até o fim. E faça o que for preciso para protegê-lo, seu idiota, não importa o quão humilhante for. Você acha que você pode disfarçar sua cara, hein? Manter tudo escondido, e cuidar de tudo por conta própria? Pare de enganar a si mesmo."

"Inukashi!"

Inukashi pulou para trás numa fração de segundo antes de Nezumi dar um passo adiante. Agachou-se em um joelho, Inukashi riu suavemente.

"Você perdeu, Nezumi".

"O quê?"

"Você arranjou algo que precisa proteger... você perdeu. Essas são as regras nestas bandas. Melhor saber delas..."

Nezumi empurrou o chão, e cercou Inukashi pela frente. Ele enlaçou o outro garoto enquanto ele tentava fugir e o empurrou para o chão.

"O que você disse sobre perder?" ele disse ferozmente. "Chega de besteira."

"Eu não estou mentindo. Nezumi, se fosse você a um tempo atrás, não teria se deixado ser provocado com tanta facilidade. Você não estaria andando à noite perdido em pensamentos, também."

Vamos, Inukashi disse em uma voz estranhamente calma. Ele se levantou e deu um suspiro.

"Ainda não percebeu, Nezumi?"

"Huh?"

Um assovio agudo rasgou o ar. Enquanto assobiava, Inukashi deu vários passos para trás.

Em todas as direções na escuridão, inúmeros pequenos pontos vermelhos de fogo brilhavam no momento em que surgiram. Não demorou muito para Nezumi perceber que eram olhos de cães. Antes de ele perceber, havia sido cercado por um bando deles. Nenhum deles levantou nem um grunhido enquanto formava um anel e avançava para ele.

"Esses são cães de guarda treinados. Você não vai conseguir fazer a mesma coisa que você fez à tarde." A voz de Inukashi foi mais longe agora. "Você caiu direitinho no aro, sem nem mesmo perceber. Definitivamente não é um erro que você normalmente comete, Nezumi. Mas aqui está a sua fraqueza. Esqueça Shion... Olhe para você, você não pode nem se proteger."

Depois de um momento de silêncio, um curto comando cortou o ar.

"Peguem ele!"

Os cães surgiram. Dezenas de corpos ágeis e mortais voaram sobre a cabeça de Nezumi e desceram sobre ele enquanto ele se agachava no chão. Ele saltou num pé, e mirou um chute direto para cima.

Um grito.

Um cão quebrou o silêncio com a sua voz e caiu no chão. Antes que Nezumi pudesse recuperar o fôlego, outro saltava do chão. Ele afundou os dentes no braço de Nezumi, que havia se envolvido com seu pano de super fibra na hora certa. Nezumi balançou todo o braço e espancou o cão no chão. Ele se levantou, e recuperou sua postura com uma árvore em suas costas.

"Inukashi, se você vai continuar com este jogo estúpido, eu não vou pegar leve com você também." Nezumi sacou sua faca da bainha de couro. Ele prendeu a respiração, e contou as pequenas chamas vermelhas.

Mais quatro.

"Então você não se importa se seus preciosos cães tiverem suas gargantas abertas, né?" ele gritou.

A voz de Inukashi respondeu do mesmo local de antes.

"Vamos ver você tentar. Isso foi apenas um aquecimento. Eles não vão ser todos educados agora e para vir em você um por um. Desta vez, eles estão vindo todos de uma vez."

Mesmo antes de Inukashi terminar a frase, Nezumi estava se lançando na direção de sua voz. Ao mesmo tempo, uma dor lancinante rasgou em seu ombro.

"Fora daqui!" Ele bateu a coronha da faca entre os olhos do cão. Junto com o som de tecido rasgando, o cão negro foi rolando pelo chão atrás dele.

"Inukashi!" Nezumi puxou Inukashi pelo seu cabelo longo e o arrastou para baixo. Ele o prendeu no chão e apertou a faca em sua garganta bronzeada.

"Retire seus cães, ou então..."

Inukashi riu.

"Ou então o quê? Você vai me matar?"

"Se você deseja assim", Nezumi disse friamente.

"Você acha que pode me matar, quando você nem sequer conseguiu matar um único cão?"

Desta vez, foi Nezumi quem deu uma risada suave.

"Mas eu não tenho uma faca extra hoje."

"O quê?"

"Sangue de cachorro embota a lâmina. Eu poupei e a deixei limpa para você."

O corpo de Inukashi se contraiu.

"Ei, pare com isso, seu idiota", ele disse nervosamente. "Tente e me mate... meus cães vão saltar em você todos de uma vez. Eles vão te rasgar em pedaços."

"Ah, não tenho certeza disso. Você é o lider, certo? Eu ouvi antes que os cães perdem a vontade de lutar se o seu lider é derrotado."

"I-Isso não é verdade, ei, realmente, corta essa. Isso é perigoso."

"Retire seus cães."

"Tudo bem." Inukashi estalou os dedos. Os cães giraram seus calcanhares de uma vez, e desapareceram na escuridão.

"Entendo. Você os treinou bem."

"Obrigado pelo elogio", Inukashi disse mal-humorado. "Engraçado como que ele parece não me fazer sentir melhor. Então, você vai tirar o seu traseiro pesado de mim ou não? Uma cena de amor com você não é exatamente algo que eu estive ansioso para fazer recentemente."

"Não se preocupe", Nezumi disse agradavelmente, "é a última coisa que eu gostaria de fazer também. Eu nem mesmo faria isso se eu fosse pago no palco."

Depois de ter libertado Inukashi e guardado sua faca, Nezumi expôs a pergunta de novo.

"O que foi isso?"

Inukashi estalou a língua enquanto ele escovava as folhas para fora de suas roupas.

"Eu tomei a iniciativa de te dar uma aula particular."

"O quê?"

"O fato é, você não é tão forte quanto você pensa. Eu só pensei que eu ia te ensinar isso. Você tem habilidade, no entanto. Muitas pessoas não podem chegar tão longe assim contra mim e meus cães."

"Ora, obrigado pelo elogio. Engraçado como ele não está fazendo eu me sentir melhor."

"Mas você não é nenhum super-humano ou monstro", Inukashi continuou. "Você é apenas um ser humano. E um homem só já pode fazer muito."

Havia uma dor estúpida no ombro de Nezumi. O sangue corria em riachos para baixo do braço.

Um pensamento fugaz passou pela mente de Nezumi. Este foi o mesmo local onde ele tinha conseguido a ferida de bala que Shion havia tratado há quatro anos.

"Nezumi!"

Ele podia ouvir a voz de Shion chamando. A luz de uma lâmpada balançava por perto.

"Parece que o rapazinho veio te buscar", Inukashi riu baixinho. "Bem, deixe-me desculpar-me então" Depois, um pouco apressado, ele acrescentou, "Nezumi, há algo estranho acontecendo dentro da Nº 6."

"Estranho?"

"Eu não sei os detalhes. Ouvi dizer que há alguma doença estranha por aí, mas eu não sei ao certo. Vou dar uma olhada nisso. E eu vou estar recebendo informações sobre o interior da Instituição Correcional em breve. Parece que as coisas estão começando a ficar agitadas por elas mesmas também. Vai ficar bem interessante, eu posso sentir o cheiro... o nariz do meu cachorro está me dizendo. Então..."

"Então?"

"Então tô dentro. Eu vou ajudar."

A mão de Inukashi se estendeu e bateu firmemente no ombro de Nezumi. Uma dor depravada baleou dentro ele. Nezumi gemeu, e caiu de joelhos, com uma mão apertando o ombro.

"Até mais. Estarei contatando em breve." Inukashi derreteu na escuridão negra mais rápido do que seus cães haviam desaparecido. Quando ele desapareceu os passos de Shion se aproximaram.

"Nezumi, aconteceu alguma coisa?"

Shion segurou a lâmpada acima de Nezumi quando ele surgiu a seus pés. Seus olhos se arregalaram em alarme.

"O que aconteceu com você? Você está sangrando!"

"Eu fui atacado por um cão."

"Um cão? Por quê?"

"Foi apenas um vira-lata. Acho que ele pensou que eu era um coelhinho bonitinho. O que você está fazendo aqui?"

Hamlet enfiou a cabeça para fora do bolso do suéter de Shion.

"Ele foi me buscar", disse Shion. "Eu pensei que algo poderia ter acontecido com você."

"Então você veio ajudar. Com uma lâmpada."

"Sim". Shion trouxe a lâmpada mais próxima da ferida de Nezumi e franziu a testa.

"Temos que tratar isso. Vamos para casa. Você pode andar?"

"É claro."

Shion enfiou a mão sob a axila de Nezumi, como se para apoiá-lo. Nezumi desviou, e começou a caminhar em frente. Seu ombro latejava dolorosamente. Mas ele não estava disposto a agarrar a mão que fora estendida a ele. Se ele aprendesse a confiar em alguém, nunca mais seria capaz de andar sozinho novamente. A mão amiga era sempre inconstante, e desaparecia tão repentinamente quanto era oferecida. Assim que as coisas eram.

Depois que eles voltaram para o quarto subterrâneo, Shion entrou em ação, rapidamente tomou as medidas apropriadas. Ele verificou a ferida, limpou e desinfetou.

"Você vai costurá-la de novo?"

"A ferida não é tão grave dessa vez, infelizmente," Shion disse, em um raro sorriso triste enquanto ele fechava o kit de emergência. "Assustou um pouco, né, Nezumi? Pensou que ia passar a mesma coisa que há quatro anos?"

"'Um pouco é um exagero. Com você, eu sinto que eu acabaria sendo costurado por uma mordida de inseto."

"Que rude," Shion sorriu. "eu ainda acho que o tratamento que lhe dei há quatro anos era a coisa apropriada a fazer."

Quatro anos atrás, naquela noite tempestuosa ― sim, na noite em que conheceu Shion ― N° 6 estava em meio a um tufão. Ele ainda se lembrava, sempre muito vívido. A janela se abriu como se o convidando; Shion, com doze anos, quando enfiava a cara para fora; ‘você está machucado, né? Eu vou tratar seu ferimento’... palavras que ele nunca havia esperado; o sorriso de satisfação que se espalhou pelo rosto de Shion no momento em que havia completado a sutura; a doçura do chocolate quente; o sabor delicioso do bolo de cereja; o conforto da cama; o som das respirações quietas e adormecidas ao lado dele quando ele acordou na manhã seguinte ― ele não poderia esquecer nada disso, não importa o quão duro ele tentasse. Mesmo quando ele tentou se desfazer disso, ele nunca conseguiu fazê-lo completamente.

Cada e toda ocorrência miraculosa daquela noite ainda permanecia com ele como sensações tangíveis, nunca desvanecendo o mínimo possível ao longo dos quatro anos até agora.

As pessoas chamam isso de memórias? Um registro mental? Ou será que elas chamam isso de destino?

Era muito mais fácil rir das pessoas, as chamando de indulgentes e fracas, quando elas aceitavam os outros incondicionalmente e tentavam salvá-los. De fato, como resultado de ter acolhido Nezumi, Shion tinha perdido quase todos os seus privilégios e fortuna.

Quanto mais fácil as coisas teriam sido se ele tivesse sido capaz de repudiar Shion com uma risada condescendente, esse menino ingênuo, essa placa de Petri de elite que tinha crescido alheio à sociedade. Mas era muito cruel rir e ficar satisfeito com isso. Fora muito vívido para esquecer. E jogar isso fora, seria muito difícil.

"Shion".

"Hm?"

"Você realmente acha isso?"

As mãos de Shion pararam no meio do enrolamento de uma bandagem.

"Quatro anos atrás. Você realmente acha que foi a coisa apropriada a fazer?"

"Bem, nós estávamos num ambiente bastante limitado", Shion disse lentamente. "Naquela época, no entanto, era o máximo que eu podia fazer. Agora, talvez eu pudesse ser capaz de costurá-lo um pouco melhor." Os longos dedos de suas mãos hábeis moviam tão agilmente quanto parecia, enrolando o curativo firmemente e ordenadamente.

"Não é apenas sobre a minha lesão. É sobre a noite inteira."

Depois que ele tinha atado as extremidades do curativo com cuidado, Shion estudou os olhos de Nezumi.

"Sua vida virou 180 graus naquela noite. Você ainda diria, mesmo agora, que o que você fez não foi um erro?"

"Sim". Sua resposta foi bem rápida, Nezumi foi pego de surpresa.

"Você não se arrepende?"

"Não."

"Nem mesmo um pouco?"

"Não."

"Por quê?"

"Nezumi, eu realmente não entendo o que você está tentando fazer. Mas eu estive pensando um pouco desde que me mudei para Cidade Perdida. Me perguntava, se eu fosse voltar no tempo, e voltar àquela noite quatro anos atrás ― se eu voltasse para antes de te conhecer, o que eu faria?"

Shion sorriu timidamente e empurrou o kit de emergência para a parte de trás da prateleira.

"Eu pensei sobre isso, de novo e de novo. E todas as vezes, eu só tinha uma resposta. Não importa quantas vezes eu voltasse para aquela noite, eu faria a mesma coisa de novo. Eu abriria a janela, e esperaria por você."

"Mesmo se você soubesse que a sua própria ruína estaria esperando nisso?"

"Mas não houve nenhuma ruína", Shion respondeu suavemente. "Eu não acho que estar aqui me arruinou. Certo, Cravat?"

O ratinho marrom assentiu com a cabeça, empoleirado em cima de uma pilha de livros.

"Aquele não é o Hamlet?"

"Hamlet está dormindo na cama."

"Ah, certo... Nossa, você tinha que dar nomes estúpidos a eles, agora está mais confuso do que antes."

"Esses pobres garotos merecem nomes, é o mínimo que você pode fazer. Ambos são inteligentes e corajosos. Assim como Hamlet hoje, quando ele me avisou que você estava em perigo."

"Bem, ele foi à pessoa errada. Mesmo aparecendo, você não seria de muita ajuda. Ocorreu tudo bem desta vez, porque eu já tinha afugentado os cães, mas se eu não tivesse, você provavelmente seria o único sentado ali com uma ferida aberta."

"Sim, bem... Eu acho que você está certo sobre isso."

Nezumi se levantou e agarrou Shion pelo braço.

"Nunca faça algo assim novamente, está me ouvindo? Aconteça o que acontecer, não fique se achando e acreditando que pode ser de alguma ajuda para mim."

Shion olhou para ele com os olhos arregalados. Nezumi ergueu o queixo e apertou a mandíbula.

"Você é impotente, lembre-se disso. Você não tem a habilidade ou a mentalidade suficiente para lutar. Você é como um pintinho que caiu de seu ninho. Você tinha acabado de fazer piu, piu, piu até ser comido por uma raposa. Então faça um favor, e não vá caminhando direto ao perigo. Não faça isso, nunca. Use sua cabeça. Coloque o seu cérebro super dotado para funcionar, a todo vapor, e use seu julgamento para avaliar a situação. Nossa, eu não sei o que diabos você estava pensando, correndo para a escuridão, mesmo sem portar uma arma".

"Eu não estava."

"O quê?"

"Eu não estava pensando na situação, ou no perigo. Eu já estava correndo antes que eu pudesse parar para pensar."

"É por isso que eu estou dizendo, Shion, da próxima vez, nunca mais faça algo tão tolo ou imprudente."

"Então o que devo fazer?"

"Não faça nada. Não há nada que você possa fazer de qualquer maneira. Coloque um cobertor sobre a cabeça ou algo assim, e fique quieto."

Shion abaixou os olhos e sacudiu a cabeça.

"Eu não posso fazer isso", ele disse calmamente. "Eu não posso ficar lá e ficar quieto quando eu sei que você está em apuros. Eu teria me explodido de qualquer maneira."

"Você seria apenas um obstáculo."

"Isso é cruel", Shion disse suavemente.

"É a verdade."

"Nezumi... você está certo", ele cedeu. "Eu sou inútil. Eu não sei como lutar, e eu nunca seria capaz de magoar alguém."

"Sim, e como um soldado, isso o colocaria no nível mais baixo. Não... Na verdade, teriam te dado baixa. Portanto, nem pense sequer em lutar. Você não tem o poder mental por ficar se preocupando com as outras pessoas. Você nem pode se proteger. Portanto, não faça nada. Estou implorando, só não chegue perto de nenhum lugar perigoso. "

O que diabos eu estou dizendo?

Nezumi apertou a mandíbula novamente.

O que ele estava dizendo? O que ele estava fazendo, levando isso a sério? Ele estava tão intrincado assim em parar Shion?

Shion vai ir sozinho.

A voz baixa de Inukashi ecoou em seus ouvidos.

Sim, Shion provavelmente iria sozinho. Ele partiria para um lugar com chances de menos de um em um milhão de voltar vivo, e ele iria sozinho, sem pedir a minha ajuda, sem sequer me avisar. Ele iria em silêncio, sem saber nada de luta, sem saber a dor do derramamento de sangue, ou dos horrores sombrios de intenção homicida. O idiota inútil, de cabeça grande e alheio.

"Mas não se trata de raciocínio", Shion disse calmamente, perfurando o silêncio.

"Hum? Você disse alguma coisa?"

"Não se trata de raciocínio, Nezumi. Sei muito bem na minha cabeça que, mesmo se eu aparecesse, eu não seria de grande ajuda para você... Eu não seria capaz de salvá-lo. Eu sei."

"Bom para você. A coisa cinzenta na sua cabeça é a única coisa de que você pode se vangloriar, de qualquer maneira. E se a sua cabeça sabe, em seguida, tome esse conselho."

"Não."

Shion franziu os lábios firmemente, com uma expressão desafiadora. Era o rosto de alguém cuja força de vontade corria forte e profundamente. Era a primeira vez que Nezumi via Shion com um cara assim.

"Não se trata de raciocínio!" Shion disse acaloradamente. "Lá atrás, quando Hamlet veio me chamar, eu estava com medo. Eu pensei que algo tinha acontecido com você. Pensei que você ia morrer. Você está me dizendo que eu deveria ter parado e calculado na minha cabeça? Perceber que de qualquer maneira eu não faria nada bom se eu fosse, e apenas ficasse sentado? eu nunca poderia fazer isso. Como eu poderia? Como eu poderia ser frio e calmo e pensar se eu tenho ou não tenho a força, se eu posso ou não posso ajudá-lo? Como alguém pode fazer isso? Idiota!"

Era a sua segunda vez que estava sendo chamado de idiota por Shion. Ambas as vezes, Nezumi não tinha sido capaz de prever a explosão de raiva de Shion. Pela primeira vez, Nezumi havia dito a Shion: 'Não chore por outras pessoas. Não entre em brigas por outras pessoas. Lute e chore apenas por si mesmo'. Shion tinha dito que ele não entendia. Era verdade, ele não tinha entendido. Desta vez, mais uma vez, Shion havia se atirado na escuridão por um estranho. Deixando de lado a razão, que o avisou dos riscos, ele tinha corrido para a escuridão. Era perigoso. Muito perigoso. Nezumi havia se preparado para caso de Shion se tornar algemas que prendiam seus tornozelos. Mas havia também o oposto. Havia uma possibilidade de que ele mesmo se tornasse os grilhões que envolviam os pulsos de Shion.

É por isso que...

Nezumi desviou o olhar do menino que estava à sua frente.

É por isso que os seres humanos são problemáticos. Quanto mais você se envolve com eles, mais apertado ficam as algemas. Eles impedem o livre impulso mental. Torna-se mais difícil de viver só para si mesmo. Talvez a gente nunca devesse ter se conhecido. Talvez um dia, Shion, você chegue a pensar assim.

Os ombros de Shion subiam e desciam enquanto ele tomava uma respiração profunda. Ele colocou os lábios de forma descontente.

"Nezumi, porque você não está dizendo nada?"

"Por nada".

"Vá em frente e ria se você quiser. Você provavelmente só acha que isso é tudo linguagem sem nexo de alguém que não sabe nada sobre o mundo, certo? Legal. Ria o conteúdo do seu coração. Vá em frente, ria."

"Espere um minuto, Shion," Nezumi disse apressadamente, "não é como se eu estivesse zombando de você. Eu só, bem... Eu só estou dizendo que é perigoso saltar no perigo desse jeito, sem pensar em..."

"Eu sei!" Shion disse com veemência. "Mas eu não poderia evitar, tudo bem, eu estava preocupado. Ou eu não sou nem sequer permitido me preocupar com você? Eu nem mesmo tenho o direito de estar preocupado?"

"Quer a verdade? Shion, Você não está fazendo sentido."

"É você quem está me fazendo falar assim!"

O punho de Shion bateu na estante. Um monte de livros entrou em colapso. Cravat deu um berro assustado, e deslizou para as dobras das roupas de Nezumi.

Shion piscou e suas bochechas coraram. Ele se abaixou para pegar os livros e murmurou um pedido de desculpas em uma voz suave.

"Eu sinto muito, eu só... Eu não queria gritar."

"Eu não me importo", Nezumi disse levemente. "Devo dizer que foi muito atraente te ver todo agitado assim. Um jeito que eu gostaria de ser tratado mais vezes de vez em quando."

"Parece que eu estou sempre agitado quando eu estou com você", Shion suspirou. "Estou surpreso com o quão emocional eu consigo ficar, às vezes."

"Você sempre foi uma pessoa emocional. Você sempre escolhe o sentimento invés a razão, e você não tem vergonha de ser honesto com as suas emoções. Quatro anos atrás, era a mesma coisa. Mesmo quando você era um candidato para os escalões de elite da No. 6, ainda obedeceu suas emoções e me acolheu."

"É... obedeci minhas emoções..." ele disse pensativo. "Eu acho que você está certo."

Shion empilhou os livros ordenadamente, e exalou.

"Mas sabe, Nezumi, eu realmente não me arrependo. Ainda estou feliz que eu não virei as costas para os meus sentimentos naquela noite."

"Eu sei."

"Hum?"

"Eu sei que você não se arrepende um pouquinho sequer do que fez. Eu apenas perguntei por um capricho. Acho que eu provavelmente estava entediado, ou algo assim."

Ele levou uma mão ao seu ombro. As bandagens, que eram velhas e gastas, e deveriam ter perdido toda a elasticidade, agora, envolviam-se firmemente em torno de seu ombro e das articulações de seu braço, e não mostrava sinais de abrandamento.

"Eu não teria sido capaz de envolver a minha ferida tão bem assim", Nezumi disse pensativo. "Você pode não ser capaz de lutar, mas provavelmente você pode tratar as pessoas. Todo mundo tem alguma coisa. E, provavelmente..."

"Provavelmente?"

"Não, não importa. Diga, estou com fome, você não está?"

Shion olhou para Nezumi e deu um sorriso gentil.

"Há pão e carne na mesa. Algumas coisas aconteceram e só há um pouco sobrando, mas deve ser suficiente para o jantar."

"E você?"

"Eu vou dormir. Sua ferida provavelmente vai te manter acordado hoje à noite, então você pode usar a cama. Vou dormir no chão."

"Que gentil da sua parte."

"Nezumi".

"Hm?"

"Se eu não tivesse te conhecido, eu provavelmente nunca teria percebido que tipo de pessoa eu era, né?"

"Por que você está tocando nisso agora?"

Shion se aproximou de Nezumi enquanto ele se sentava em sua cadeira e o olhou diretamente nos olhos.

"Gostaria de ter crescido um adulto compassivo, racional, obediente, mesmo sem saber que havia tantas emoções dentro de mim. Eu nunca saberia o que era chorar, ou ficar com raiva, ou sentir resistência a algo. Eu te conheci, e percebi quanta abundância eu tinha. E eu estou orgulhoso de que sei isso agora."

Shion cortou suas palavras e hesitante abaixou os olhos.

"Eu estou feliz de que eu encontrei você."

Saiu como um sussurro que mal dava para entender. Shion se curvou, os olhos ainda abaixados. Seus lábios roçaram levemente contra os de Nezumi.

Um livro caiu em algum lugar com um toc macio.

Quando Shion levantou o rosto novamente, Nezumi falou.

"Não é um beijo de agradecimento, é?"

"É um beijo de boa noite."

"Boa noite, é?"

"Eu vou fazer tosa nos cães amanhã", disse Shion. "Há um monte deles com pêlo longo. Inukashi apenas os deixa, então seus pêlos ficam tudo emaranhado e estão começando a inflamar a pele."

"Acabei de ser mordido por um cão, certo? Eu não me importo se eles têm pêlo curto ou pêlo longo, eu não quero nem ouvir falar de cães agora."

Shion soltou uma gargalhada e deu um aceno casual de sua mão.

"Boa noite, então."

"É. Bons sonhos."

"Você também."

Shion desapareceu nas sombras dos livros. Cravat se arrastou para fora da roupa do Nezumi e correu atrás dele, talvez com a intenção de dormir com ele também.

"Beijo de boa-noite, hein."

Nezumi traçou seus lábios com os dedos, e caiu para trás em sua cadeira.

"Você é um tanto mentiroso."

A fome atroz, o cansaço e a dor latejante caíram. No lugar disso, algo brotava de dentro. Tristeza, solidão... mas também não era tanto. O que era? Uma gota quente rolou pelo seu rosto. Levou um tempo para entender que elas eram lágrimas. Ele havia esquecido há muito tempo o que era chorar.

Tinha um gosto salgado, como uma sopa salgada.

Nezumi levou os joelhos para cima e colocou a cabeça para baixo entre eles. Lentamente, ele engoliu as lágrimas que penetraram em sua boca.

 

Leia o capítulo 5.

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Notas

  1. Traduzido do Inglês que foi traduzido do Japonês. As Orelhas do Rei Midas (http://www.algosobre.com.br/mitologia/midas.html). [Voltar]

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1 comentários:

Anally-Chan disse...

Ah que beleza! :3 Essa foi a sua postagem mais rápida, me deixou muito feliz! Vou ler agora mesmo (apesar do horário kkkk).
Continua assim!
Bjs

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